PowerPlay Magazin

No próximo fim de semana, quando forem as 15h00 (14h em Portugal) e a bandeira tricolor da França baixar, dar-se-á início à 81ª edição das 24 horas de Le Mans (ou du Mans, como dizem os franceses), a mais famosa prova automobilística do mundo, a que apenas as 500 milhas de Indianápolis se podem comparar. Depois da prova americana e do Rally de Monte Carlo, é a prova mais antiga que ainda se disputa.

                Este ano, como vem sido hábito desde o início deste século, tendo perdido apenas duas edições desde o ano 2000, a Audi é a principal favorita à vitória geral, vindo a principal oposição da parte da Toyota, que desde há muito vem lutando e gastando para conseguir o tão almejado triunfo na clássica francesa. Depois, há ainda os dois Lola da Rebellion Racing que podem também lutar pelos lugares cimeiros na principal categoria (LMP1), este ano apenas com 8 inscritos. Na segunda categoria, a LMP2, há vários favoritos com os diversos Oreca, Lotus, Zytek e Morgan em disputa pela vitória. Nesta categoria, é importante notar que quase todas as equipas vêm equipadas com motores Nissan, outra marca japonesa que durante muito tempo lutou pelo triunfo na prova mas que acabou apenas por sair de mãos vazias. Destaque também para a entrada dos motores checos Praga, que equiparão os Lotus da Kodewa, uma equipa alemã. Nas restantes categorias, LMGTE Pro e Am, destaque para a presença de pilotos portugueses: Pedro Lamy, que vai para a sua 14ª participação, conduzirá o carro n.º 98, um dos Aston Martin oficiais; e Rui Águas, na categoria LMGTE Am, que conduzirá o Ferrari 458 da equipa 8Star Motorsports com o número 81. Recorde-se que Pedro Lamy já tem, no seu palmarés, dois segundos lugares na prova francesa (2007 e 2011, ambos em Peugeot), tendo vencido, na última edição, a categoria LMGTE Am.

                  As Origens

                As 24 horas de Le Mans surgiram da mente de 3 personalidades: Georges Durand, secretário do Automobile Club de l’Ouest (ACO), Charles Faroux, editor da revista La Vie Automobile e Emile Coquille, agente em França das rodas Rudge-Whitworth. Coquille prometeu criar um trofeu, a taça Rudge-Whitworth, e doou 100.000 francos a Durand para este tratar de organizar a prova num circuito de estrada a sul de Le Mans. Entretanto, Faroux elaborou um regulamento, muito simples, diga-se, fazendo das 24 horas uma prova destinada aos carros de produção corrente. A ideia inicial era realizar uma prova onde carros convencionais, carros que toda a gente podia comprar, fossem testados até ao limite numa prova de longa duração. Inicialmente, a prova era para ser realizada em 8 horas, (4, corridas durante o dia, 4, durante a noite), mas logo se percebeu que o que se queria era uma prova de 24 horas contínuas. Outra ideia inicial, abandonada depois, era que cada edição apenas fizesse parte de um prova trienal, ou seja, o vencedor apenas seria encontrado em 1925, no somatório dos quilómetros percorridos pelo mesmo carro nas três provas realizadas (1923, 1924, 1925). Só aí o Troféu Ridge-Whitworth seria entregue. Mas esta ideia apenas teve uma edição, a primeira, sendo substituída por uma prova bienal, que se disputaria até depois da 2ª Guerra Mundial.

                E foi em 1923 que se disputou a primeira edição: a 26 de maio, 33 concorrentes deram início a esta prova mítica. No final, depois de cumpridas 128 voltas a um circuito de 17,262 km, os vencedores foram André Lagache e René Leonard, tripulando um Chenard & Walcker de 3 litros. Foram os primeiros heróis das 24 horas de Le Mans!

         Os Primeiros Passos 

Inicialmente, e tendo em conta os objetivos desta prova, os participantes utilizavam carros de produção corrente, longe dos protótipos que depois dominariam a prova. Tendo ainda em conta esses objetivos, inicialmente, os participantes tinham de transportar no carro todo o material suplente, incluindo rodas, assim como as ferramentas indispensáveis à reparação dos carros, a qual apenas podia ser feita pelo próprio piloto ou pelo copiloto (mais tarde, seria permitido que um mecânico também ajudasse nas reparações). Esta regra apenas não se aplicava ao combustível, por razões óbvias de segurança. Outras regras iniciais, agora julgadas risíveis, incluíam: os carros teriam de poder transportar “em segurança e com toda a comodidade” duas ou quatro pessoas, com a respetiva bagagem; os carros com capota teriam de percorrer pelo menos 1 hora com a capota levantada; todos os veículos teriam de percorrer pelo menos 1 hora, antes de poderem ser reabastecidos de óleo ou de líquido de arrefecimento (exceto combustível) …

                 Desde essa edição de 1923, a prova realizou-se quase todos os anos, sendo as exceções as edições de 1940 a 1948, todas canceladas devido à 2ª Guerra Mundial, e a edição de 1936, cancelada devido a uma prolongada greve geral em França. A edição de 1968 esteve também para ser cancelada, ainda devido aos efeitos do Maio de 68, mas acabou por se realizar em setembro. À exceção da prova inicial e desta última, assim como da edição de 1956, ainda sob os efeitos do acidente de 1955 (v. abaixo), todas as edições se realizaram em junho. Normalmente, a prova iniciava-se às 16h00, mas desde há alguns anos que as 14h00 marcam o seu início.  

                Na primeira fase das 24 horas de Le Mans, até à 2ª Guerra Mundial, a prova foi dominada por pilotos amadores, gentlemen drivers como os Bentley Boys, endinheirados pilotos que dominaram a prova no final da década de 30, vencendo-a quatro vezes seguidas, entre 1927 e 1930. A década de 30 assistiu ao surgimento da Alfa Romeo como força dominadora, vencendo também 4 vezes seguidas, entre 1931 e 1934.

                Depois da guerra, assistir-se-ia à luta entre a Jaguar (5 vitórias na década de 50) e a Ferrari (9 vitórias entre 1949 e 1965).  

11 de junho de 1955

              A história das 24 horas de Le Mans (e do desporto automóvel) ficou tristemente marcada pelo trágico acidente da 23ª edição, disputada a 11 e 12 de junho de 1955. Nessa prova, mais de 80 espetadores (entre 80 e 85, os números variam consoante as fontes de informação), incluindo um piloto, Pierre Levegh, morreram no pior acidente do desporto automóvel. A juntar a estes números, entre 100 e 150 espetadores ficaram feridos, muitos dos quais morreriam posteriormente, em virtude dos ferimentos. Mais do que as consequências imediatas desse acidente foram os seus efeitos no desporto motorizado que marcaram esta data como aquela em que as consciências despertaram para as perigosidades do desporto automóvel, levando a uma cruzada, ainda que incipiente, em defesa da segurança, particularmente da dos espetadores.

                Nesse ano, a luta perfilava-se tenaz: de um lado a Jaguar, com os D-Type e os seus travões de disco (uma inovação feita para a competição, levada depois à indústria automóvel); do outro a Mercedes, com os 300 SLR, um carro que antecipava o futuro, com o seu chassis em liga de magnésio, muito leve mas muito inseguro e inflamável, com o motor baseado no seu carro de Formula 1 de 1954 que havia “chocado” o mundo pelo seu aspeto polido, profissional, perfeito nos detalhes. Em termos de pilotos, a marca alemã parecia melhor apetrechada: nada menos do que o campeão do mundo de Fórmula 1, Juan Manuel Fangio, e um jovem britânico em ascensão, de 26 anos, Stirling Moss. Ao todo, a Mercedes enviou 3 carros para a prova. A Jaguar tinha também 3 carros, estando o destaque no tripulado por Mike Hawthorn/Ivor Bueb. Hawthorn viria a ser campeão do mundo de F1 em 1958. Outro destaque da marca britânica era o carro tripulado por Duncan Hamilton e Tony Rolt, vencedores da edição de 1953, num Jaguar C-Type.       

                Na 35ª volta, 3 horas depois do início, quatro carros aproximavam-se da zona da meta: Lance Macklin, num Austin-Healey, Hawthorn, no Jaguar e, mais atrás, Levegh e Fangio, nos Mercedes. Nessa altura, Hawthorn liderava, seguido por Fangio. Depois de ultrapassar o Austin, Hawthorn travou forte e eficazmente com a segurança dos seus travões de disco, com a intenção de entrar nas boxes. Macklin, com um carro equipado com os tradicionais travões de tambor, a fim de evitar a traseira do Jaguar, virou para a esquerda, para o meio da pista, na trajetória do Mercedes de Levegh, que seguia a cerca de 240 km/h. O Mercedes bateu na traseira do Austin e, catapultado, lançou-se no ar, despedaçando-se por entre a multidão da bancada principal. Foi um dia trágico!

A prova continuaria, argumentando a organização que se ela fosse cancelada teria sido muito complicado transportar os feridos para o hospital, com prontidão, com uma multidão calculada em 300.000 pessoas a entupirem as estradas de acesso. No final, Hawthorn e Bueb ganhariam a prova, sem chama nem glória, depois da equipa Mercedes, recebendo ordens diretas da Alemanha, ter abandonado. Afinal, ainda com as feridas da guerra a sararem, não ficava nada bem dezenas de vidas francesas serem assim ceifadas, no seu território, por um produto da engenharia alemã. O acidente motivaria mesmo o abandono da Mercedes da competição automóvel, abandono esse que apenas terminaria já nos anos 80. Outra consequência: a Suíça proibiu as provas automóveis no seu território, proibição que ainda se mantém hoje, exceto para as provas de montanha. Mas a maior consequência foi o despertar das consciências dos organizadores das provas para os problemas de segurança: a morte de pilotos durante as provas era habitual e tido como “fazendo parte do espetáculo” mas a morte de tantos espetadores não poderia ficar esquecida e foram feitos testes e vistorias de segurança a todos os circuitos onde se disputavam provas sob a égide da CSI, antecessora da FIA. As medidas pouco ou nada mudaram e a morte continuaria pelos circuitos e foi só já na década de 70, com o despertar das consciências dos próprios pilotos, que a segurança entrou como principal requisito na realização das provas automóveis.

Tempos de Glória

Mas a história longa de Le Mans não se faz só de tragédias, faz-se sobretudo de glórias e de lutas intensas pela vitória. E nenhuma década preconiza melhor esta afirmação que os anos 60, quando a Ford e a Ferrari lutaram afincadamente pela vitória, empregando todos os meios disponíveis. A Ford triunfou nesta batalha com os seus GT40, quase conduzindo a equipa italiana à falência, levando-a a ser adquirida pela FIAT em 1970, num acordo que serviu para que ela não caísse nas mãos do gigante americano. Depois desta luta a dois, a Porsche entrou em cena e construiu um palmarés invejável na clássica francesa, sobretudo na década de 80, quando triunfou consecutivamente entre 1981 e 1987. Ao todo, 16 vitórias para a marca de Stuttgart.

No início da década de 90, as 24 horas de Le Mans viveram alguns momentos de menos euforia, motivados pelo fim dos carros do grupo C, mas regressaria aos seus tempos de glória no final dessa década, quando a Porsche, através da TWR, e depois a Audi se interessaram novamente pela prova francesa.

Os Heróis

Falar dos heróis das 24 horas de Le Mans é falar de todos aqueles que venceram a prova. É falar também daqueles que, pelos seus feitos, merecem destaque na galeria dos notáveis da clássica francesa. Para muitos pilotos, alguns com provas dadas em outras disciplinas, é também falar em terminar a prova, chegar ao fim das 24 horas, mesmo sem o desejado triunfo. Dos nomes mais sonantes desta prova, convém destacar alguns.

Em primeiro lugar, dois nomes surgem: Tom Kristensen, o dinamarquês recordista de vitórias, tendo triunfado por 8 vezes (1997, 2000, 01, 02, 03, 04, 05 e 2008) e Jacky Ickx, apelidado de Mister Le Mans, triunfador em 6 ocasiões (69, 75, 76, 77, 81 e 82).

Destacam-se ainda os quíntuplos vencedores: Derek Bell, Frank Biela e Emanuele Pirro.

Dos outros heróis, destaque para Henri Pescarolo, o veterano francês, cuja equipa de competição se situa precisamente no circuito de La Sarthe, que participou em 33 edições da prova, desde 1966 a 1999, tendo vencido por 4 vezes (72, 73, 74 e 84). Destaque ainda para Graham Hill, autor de um feito único: vencedor no GP do Mónaco (5 vezes), vencedor das 24 horas de Le Mans (1972) e vencedor das 500 Milhas de Indianápolis (1966). É Tripla Coroa do Automobilismo e foi, até ao momento, o único a consegui-la. Foi ainda campeão do mundo de F1 (1962 e 1968).

Importa também referir Pierre Levegh, não pelo acidente de 1955 mas pelo feito de 1952, quando por pouco não vencia a prova, tripulando um Talbot-Lago, fazendo a prova toda sozinho (prescindindo do copiloto!). Abandonou a 45 minutos do fim, quando liderava, depois de problemas na caixa de velocidades, motivados por uma falha sua, talvez devido ao cansaço.

Algumas curiosidades:

Até 1969, a prova tinha um procedimento de partida único, a partida à Le Mans: carros estacionados no lado direito da reta da meta, pilotos do outro lado. Quando a bandeira francesa baixava, os pilotos corriam para os carros e arrancavam. Este procedimento tinha levado a alguns acidentes (e mortes!) porque muitos pilotos, com a pressa de arrancar, não apertavam os cintos. Em 1969, quando foi dado o sinal de partida e ao contrário de todos os outros pilotos, Jacky Ickx atravessou a pista devagar, sendo quase atropelado por outro piloto, e entrou calmamente no seu Ford. Colocou os cintos e arrancou em último. Jacky Ickx acabaria por vencer a prova! Nessa edição, logo na 1ª volta, John Woolfe, num Porsche 917, morreria, presumivelmente por não ter apertado os seus cintos. A partida à Le Mans acabou ali e na edição de 1970, haveria uma partida lançada, procedimento que se mantém até aos dias de hoje.

O tradicional banho de champanhe, habitual em muitas provas automobilísticas (e não só!) teve o seu início em Le Mans, quando, em 1967, um dos vencedores, o piloto americano Dan Gurney, borrifou a multidão com esta bebida;

“The Day the winner came second”. Este foi o título da revista Motor da edição das 24 horas de 1979. Nesse ano, a prova foi dominada pelos Porsche 935, que ocuparam os 3 primeiros lugares. No 2º lugar, nada mais nem menos que a estrela de cinema americana Paul Newman. Mais que os vencedores, essa edição recorda quem chegou em 2º!

O circuito de La Sarthe teve várias configurações ao longo da história mas, no essencial, manteve o mesmo figurino: as 24 horas disputam-se num circuito onde grande parte do seu percurso são estradas nacionais. Havia um pormenor que tornava este circuito diferente, perigoso também, uma longa reta, Les Hunaudières, com quase 6 km de extensão. Aqui, os melhores atingiam facilmente velocidades acima dos 350 km/h. Durante os anos 80, uma equipa francesa, a WM, tinha apenas um objetivo para as 24 horas: bater o recorde de velocidade e ultrapassar os 400 km/h. E conseguiu! Em 1988, Roger Dorchy, atingiu os 405 km/h na longa reta, ao volante de um WM, com motor Peugeot. O carro tinha sido preparado especialmente para este efeito, com todas as tomadas de ar tapadas a fim de maximizar a aerodinâmica. O carro não aguentaria muito e acabaria por abandonar à 57ª volta com problemas de sobreaquecimento do motor mas o recorde manteve-se, ainda para mais quando a FIA, em 1990, decidiu que nenhum circuito onde se disputassem provas sobre a sua égide poderiam ter retas com mais de 2 km. A reta das Hunaudières foi assim cortada por duas chicanes, configuração que ainda se mantém. O recorde da WM manter-se-á para sempre!